A crise do euro bate às portas da City londrina
A crise do euro é potencialmente devastadora para a City, que concentra quase dois trilhões de dólares diários do mercado de divisas mundial. Em julho um informe revelou que os bancos britânicos tem cerca de 300 bilhões de dólares investidos em títulos dos chamados PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha). Um efeito dominó do euro produziria um buraco nas finanças de bancos como o RBS (que emprestou cerca de 150 bilhões de dólares aos PIIGS) ou o Barclay (exposto em uma cifra similar). O artigo é de Marcelo Justo.
Marcelo Justo - Correspondente da Carta Maior em Londres
O Reino Unido enfrenta sua segunda recessão em três anos, tem o índice de desemprego mais alto desde 1994 e seu nível de vida caiu em 2011 pelo quinto ano consecutivo, mas na City a festa continua. É certo que os banqueiros não gozam do favor da opinião pública, é verdade que os indignados que acamparam há mais de dois meses nas fronteiras da City são uma pedra no sapato, e não resta dúvida que, como em A Máscara da Morte Rubra, de Edgar Allan Poe, a peste do euro é um fantasma que está batendo à porta, mas enquanto não há sinais de contágio, a City pode alardear uma saúde juvenil.
Em seus dois quilômetros quadrados, concentram-se uns 500 bancos, cerca de 70% dos Hedge Funds de toda a Europa, seguradoras e resseguradoras, quase dois trilhões de dólares diários do mercado de divisas mundial, tudo isso escorado por um aparato de grandes escritórios de advocacia que faturam cerca de 1,5 bilhões de dólares ao ano, uma bagatela se levarmos em conta que as bonificações da City chegam à casa dos 10 bilhões de dólares.
Com tanto dinheiro, o poder político e midiático pode ser sentido em todas as partes. Em meados de dezembro, o primeiro ministro David Cameron não hesitou em vetar uma modificação do Tratado da União Europeia que buscava resolver a crise do euro, apesar de mais metade das exportações do país irem para o resto da União Europeia, em especial para Alemanha e França, os principais impulsionadores da reforma.
O primeiro ministro justificou o veto com um apelo ao “interesse nacional” que, longe de ser a proteção do reino em matéria de prevenção de um ataque militar, se identifica com os interesses da City frente à ameaça de uma regulação europeia desfavorável que coloque em perigo a hegemonia britânica em setores fundamentais das finanças mundiais, como os Hedge Funds ou o mercado de derivativos.
Uma inclinação similar ocorre no plano interno. No parlamento, dias antes das festas de Natal, o ministro de Finanças, George Osborne, aceitou a recomendação de uma comissão investigadora sobre a necessidade de isolar a banca de depósitos e comercial das operações da banca financeira, mas descartou uma regulação dura ao estilo da lei Glass e Steagall que os EUA aprovaram em meio à depressão dos anos 30 que proibia os bancos de operar simultaneamente em ambos os setores.
Em seu anúncio, Osborne indicou que o White Paper, passo prévio à legislação, seria publicado em 2015 após uma nova rodada de consultas onde a City poderia fazer valer todo seu lobby e rede de contatos que se estende ao coração do próprio governo. David Cameron é filho de um corretor de bolsa e seu vice-primeiro ministro, o liberal Nick Clegg, ainda é diretor do United Trust Bank.
Na década passada os trabalhistas foram vítimas da mesma ilusão sobre as bondades do setor financeiro propagadas como verdade revelada pela usina midiática. Segundo o jornal City A.M, porta-voz do setor financeiro, o setor é fundamental para a economia britânica em termos de emprego (ao redor de um milhão e meio de empregos) ou contribuição em impostos (cerca de 10% das receitas do fisco).
A hipérbole midiática, que justificaria tantas concessões, torna-se clara quando se comparam essas cifras com os números do setor manufatureiro. Uma pesquisa do Centro para a Investigação da Mudança Sócio-Cultural, da Universidade de Manchester (CERS, na sigla em inglês), indicou que a indústria emprega dois milhões de trabalhadores e que, em pleno boom financeiro no período 2002-2008, a City pagou a metade do que o setor manufatureiro paga em impostos para os cofres britânicos.
Se o aparato financeiro legal que sustenta a City permite a evasão de impostos com o recurso mágico dos paraísos fiscais, a sangria que a City produziu com a queda do Lehman Brothers mostra o perigo mortal da dependência econômica britânica desse setor. Desde setembro de 2008, o governo britânico aportou entre injeção direta de fundos, empréstimos e garantias mais de um trilhão de dólares para estabilizar o sistema bancário.
“Bancocracia” em perigo
Duas coisas ameaçam hoje o poder dessa “bancocracia”. Em meio ao pior ajuste econômico do período pós-guerra, os protestos das Organizações Não-Governamentais estão começando a ter um impacto na consciência nacional e nos tribunais. O movimento UK Uncut (Reino Unido sem cortes), que se formou logo após o corte draconiano anunciado no ano passado pela coalizão liberal-conservadora, está liderando campanhas contra grandes empresas que são acusadas de sonegar impostos. A City e sua banca na sombra espalhada em entidades financeiras paralelas em paraísos fiscais é um dos alvos do ataque.
Na quinta-feira passada, a organização iniciou um recurso contra o acordo entre a autoridade tributária britânica e o banco Goldman Sachs que descontou o juro de um imposto devida pela entidade financeira. Se a cifra é menor – cerca de 27 milhões de dólares – o simbolismo é considerável.
Enquanto isso, o movimento Occupy, que está acampado na Catedral de Saint Paul, nas portas da City, ganhou uma batalha legal pré-natalina quando a justiça britânica decidiu que não tomaria nenhuma decisão, até 11 de janeiro, sobre o pedido de retirada do acampamento formulado pelo banco UBS.
Mais perigosa e potencialmente devastadora para a City é a crise do euro. Em julho um informe revelou que os bancos britânicos tem cerca de 300 bilhões de dólares investidos em títulos dos chamados PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha). Um efeito dominó do euro produziria um buraco nas finanças de bancos como o RBS (que emprestou cerca de 150 bilhões de dólares aos PIIGS) ou o Barclay (exposto em uma cifra similar).
Em meio a esse incerto panorama econômico-financeiro internacional, com a ameaça de uma segunda recessão a vista e de uma situação de crédito imobilizado, a City seguirá apostando desde seu lugar privilegiado no cassino global para seguir em festa. No entanto, como se sabe, a especulação é uma arma de dois gumes que pode terminar com uma saída virulenta do cassino com os bolsos vazios. Até para a City, 2012 será um ano difícil e perigoso.
Tradução: Katarina Peixoto
Em seus dois quilômetros quadrados, concentram-se uns 500 bancos, cerca de 70% dos Hedge Funds de toda a Europa, seguradoras e resseguradoras, quase dois trilhões de dólares diários do mercado de divisas mundial, tudo isso escorado por um aparato de grandes escritórios de advocacia que faturam cerca de 1,5 bilhões de dólares ao ano, uma bagatela se levarmos em conta que as bonificações da City chegam à casa dos 10 bilhões de dólares.
Com tanto dinheiro, o poder político e midiático pode ser sentido em todas as partes. Em meados de dezembro, o primeiro ministro David Cameron não hesitou em vetar uma modificação do Tratado da União Europeia que buscava resolver a crise do euro, apesar de mais metade das exportações do país irem para o resto da União Europeia, em especial para Alemanha e França, os principais impulsionadores da reforma.
O primeiro ministro justificou o veto com um apelo ao “interesse nacional” que, longe de ser a proteção do reino em matéria de prevenção de um ataque militar, se identifica com os interesses da City frente à ameaça de uma regulação europeia desfavorável que coloque em perigo a hegemonia britânica em setores fundamentais das finanças mundiais, como os Hedge Funds ou o mercado de derivativos.
Uma inclinação similar ocorre no plano interno. No parlamento, dias antes das festas de Natal, o ministro de Finanças, George Osborne, aceitou a recomendação de uma comissão investigadora sobre a necessidade de isolar a banca de depósitos e comercial das operações da banca financeira, mas descartou uma regulação dura ao estilo da lei Glass e Steagall que os EUA aprovaram em meio à depressão dos anos 30 que proibia os bancos de operar simultaneamente em ambos os setores.
Em seu anúncio, Osborne indicou que o White Paper, passo prévio à legislação, seria publicado em 2015 após uma nova rodada de consultas onde a City poderia fazer valer todo seu lobby e rede de contatos que se estende ao coração do próprio governo. David Cameron é filho de um corretor de bolsa e seu vice-primeiro ministro, o liberal Nick Clegg, ainda é diretor do United Trust Bank.
Na década passada os trabalhistas foram vítimas da mesma ilusão sobre as bondades do setor financeiro propagadas como verdade revelada pela usina midiática. Segundo o jornal City A.M, porta-voz do setor financeiro, o setor é fundamental para a economia britânica em termos de emprego (ao redor de um milhão e meio de empregos) ou contribuição em impostos (cerca de 10% das receitas do fisco).
A hipérbole midiática, que justificaria tantas concessões, torna-se clara quando se comparam essas cifras com os números do setor manufatureiro. Uma pesquisa do Centro para a Investigação da Mudança Sócio-Cultural, da Universidade de Manchester (CERS, na sigla em inglês), indicou que a indústria emprega dois milhões de trabalhadores e que, em pleno boom financeiro no período 2002-2008, a City pagou a metade do que o setor manufatureiro paga em impostos para os cofres britânicos.
Se o aparato financeiro legal que sustenta a City permite a evasão de impostos com o recurso mágico dos paraísos fiscais, a sangria que a City produziu com a queda do Lehman Brothers mostra o perigo mortal da dependência econômica britânica desse setor. Desde setembro de 2008, o governo britânico aportou entre injeção direta de fundos, empréstimos e garantias mais de um trilhão de dólares para estabilizar o sistema bancário.
“Bancocracia” em perigo
Duas coisas ameaçam hoje o poder dessa “bancocracia”. Em meio ao pior ajuste econômico do período pós-guerra, os protestos das Organizações Não-Governamentais estão começando a ter um impacto na consciência nacional e nos tribunais. O movimento UK Uncut (Reino Unido sem cortes), que se formou logo após o corte draconiano anunciado no ano passado pela coalizão liberal-conservadora, está liderando campanhas contra grandes empresas que são acusadas de sonegar impostos. A City e sua banca na sombra espalhada em entidades financeiras paralelas em paraísos fiscais é um dos alvos do ataque.
Na quinta-feira passada, a organização iniciou um recurso contra o acordo entre a autoridade tributária britânica e o banco Goldman Sachs que descontou o juro de um imposto devida pela entidade financeira. Se a cifra é menor – cerca de 27 milhões de dólares – o simbolismo é considerável.
Enquanto isso, o movimento Occupy, que está acampado na Catedral de Saint Paul, nas portas da City, ganhou uma batalha legal pré-natalina quando a justiça britânica decidiu que não tomaria nenhuma decisão, até 11 de janeiro, sobre o pedido de retirada do acampamento formulado pelo banco UBS.
Mais perigosa e potencialmente devastadora para a City é a crise do euro. Em julho um informe revelou que os bancos britânicos tem cerca de 300 bilhões de dólares investidos em títulos dos chamados PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha). Um efeito dominó do euro produziria um buraco nas finanças de bancos como o RBS (que emprestou cerca de 150 bilhões de dólares aos PIIGS) ou o Barclay (exposto em uma cifra similar).
Em meio a esse incerto panorama econômico-financeiro internacional, com a ameaça de uma segunda recessão a vista e de uma situação de crédito imobilizado, a City seguirá apostando desde seu lugar privilegiado no cassino global para seguir em festa. No entanto, como se sabe, a especulação é uma arma de dois gumes que pode terminar com uma saída virulenta do cassino com os bolsos vazios. Até para a City, 2012 será um ano difícil e perigoso.
Tradução: Katarina Peixoto
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